O Julgamento da História e o Tribunal da Consciência

Francisco Augusto da Silva Rocha (1864-1957)
Por Dorindo de Carvalho, óleo s/tela, 2020


Texto de Maria João Fernandes

Crítica de Arte

A.I.CA. - Associação Internacional de Críticos de Arte

Bisneta de Francisco Augusto da Silva Rocha

Que acompanha a petição nacional apresentada na assembleia da república a 25 de abril de 2020

À atenção do Ex.mo Sr Presidente da Assembleia da República Dr. Eduardo Ferro Rodrigues e de todos os signatários desta Petição

Lisboa, 25 de Abril de 2020.


JUSTIÇA PARA A MEMÓRIA DE SILVA ROCHA E SUA FAMÍLIA    

    Volvidos cerca de quatro anos sobre os terríveis e sem precedentes factos que atingiram uma figura de importância cultural nacional e internacional: Francisco Augusto da Silva Rocha (1864-1957) e a sua Família, nenhuma resposta foi obtida dos responsáveis pelo poder autárquico em Delegação de Funções na Junta de Freguesia da Glória e Vera Cruz. Tem vigorado a lei do silêncio, por parte destes responsáveis e de todos os deputados e vereadores inclusive no momento das minhas duas intervenções públicas na Assembleia Municipal de Aveiro a 4 de Dezembro de 2015 da qual não ficou qualquer registo em Ata e a 20 de Dezembro de 2017, ambos publicadas no Diário de Aveiro.

    Recordando os inqualificáveis e quase inenarráveis factos e reduzindo-os ao essencial: a urna perpétua contendo os restos mortais de Francisco Augusto da Silva Rocha (1864-1957), autor do centro histórico de Aveiro por sua causa considerada “Capital da Arte Nova Portuguesa” (José-Augusto França) e recentemente candidata a Capital Europeia da Cultura, que lhe deve a sua identidade cultural a nível nacional e internacional, no período em que passam 60 anos sobre a sua morte, bem como as urnas perpétuas de toda a sua Família, foram retiradas em 2015 do Jazigo Capela de Família e lançadas, depois de destruída a cobertura de madeira, numa única sepultura de terra com todas as características de uma vala comum, em circunstâncias ainda por apurar. Com a justificativa, que me foi dada pessoalmente pelo Sr. Presidente da Junta, de que “não sabia quem era Silva Rocha” e com a falsa razão do estado de ruína do Jazigo, falsidade que pode ser comprovada por fotografias de 2007 e da atualidade. Isto ocorreu após posse administrativa incumprindo as normas legalmente para tal exigidas pela Junta de Freguesias de Glória e Vera Cruz, a pretexto do mau estado do mesmo, a que se seguiu a venda em hasta pública, a concessão por emissão de alvará (a 24 de Fevereiro de 2014) ao novo proprietário após emissão de uma ficha de sepultura do Jazigo 32 (a 19 de Fevereiro) em branco, sem designar qualquer dos nomes dos inumados no Jazigo (como se este encontrasse vazio). Nomes esses que estavam todos designados no livro de Inumações do Cemitério iniciado em 1932. As urnas foram retiradas a 20 de Março de 2015 e colocadas numa única sepultura de terra, como já referi, em circunstâncias e em local ainda por apurar.


    Há que referir que existem provas documentais:

    1. Do bom estado do Jazigo.

O Jazigo e todas as urnas aí depositadas encontravam-se em excelente estado no ano 2000 (tinha tido obras recentes comprovadas por faturas), previamente à inumação da última urna ali depositada, e respetivo funeral. Existe fotografia original em papel com indicação da casa fotográfica, tirada em 2007 e arquivada no Tribunal Judicial de Aveiro. Uma carta, fotografias e objetos pessoais que se achavam no jazigo, ainda aí se encontram em bom estado de conservação. As urnas alegadamente deterioradas estavam em perfeito estado até 2007 do que existem testemunhas e provas, e o funeral com depósito da última, a de José Augusto Rocha Simões (neto de Silva Rocha), ocorreu em 2000.

    2. Da propriedade do Jazigo,

certificada pelo documento de compra do terreno, existente no Arquivo Histórico de Aveiro, para construção de jazigo perpétuo em 1903. E por inúmeros documentos resultantes de um Processo de Averbamento do Jazigo, efetuado pela Câmara Municipal de Aveiro em 2005, previamente a Ação Judicial de Divisão de Coisa Comum que teve por objeto o Jazigo 32, entre 2005 e 2007

    3. Da ilegitimidade dos Editais.

    Lamentavelmente publicados sem qualquer tentativa para localizar os proprietários. Os Editais foram divulgados sem mencionar, como a lei obriga, o nome dos últimos proprietários conhecidos e os nomes dos inumados, todos minuciosamente registados no “Livro do Cemitério” iniciado em 1932, entre os quais figurava Francisco Augusto da Silva Rocha. Sendo que o nome do proprietário original, João Pedro Soares, um dos maiores beneméritos de Aveiro do seu tempo, consta no Calendário Histórico de Aveiro e se acha gravado na fachada, onde estão esculpidas duas corujas, ave misteriosa, capaz de enxergar nas trevas e simbolicamente considerada, protetora dos mortos.

    4. Da licitação em hasta pública a 27 de Janeiro de 2014, do Jazigo 32 

    da Família de João Pedro Soares, ainda com o seu precioso conteúdo e sem que tivessem sido cumpridos os procedimentos legais obrigatórios.

    5. Da sua compra por Artur Filipe,

    pai do atual Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Aveiro ficando a concessão em nome de José Pires Capão (que entretanto abdicou desta).

    6. Da possibilidade de identificar o nome do Proprietário do Jazigo 32 e todos os aí inumados.

    O nome de João Pedro Soares acha-se gravado na fachada e os de todos os inumados estão registados no Livro do Cemitério iniciado em 1932.
Haveria a maior facilidade em identificar os inumados, dois deles João Pedro Soares e Silva Rocha, figuras históricas de Aveiro e sua região, divulgadas inclusive na internet no Calendário Histórico da Cidade.

    7. Da facilidade de contactar a Família dos inumados.

    Por outro lado havia também a maior facilidade em contactar a sua família dado que a Câmara Municipal de Aveiro promoveu e apoiou em 2009 a publicação da monografia de que sou autora: Francisco da Silva Rocha (1864-1957): Arquitetura Arte Nova - uma Primavera Eterna e a Exposição que comissariei: Silva Rocha Arquiteto Artista e inaugurou o Museu de Arte Nova e com a presença do então Secretário de Estado da Cultura e do então Vereador da Cultura: Dr. Miguel Capão Filipe. O livro, que na capa apresenta Silva Rocha, em cartaz, diante do Museu de Arte Nova de que é autor, era vendido nas livrarias e Museus da Câmara. Eu própria era facilmente contactável, como colaboradora da C. M. A. e como figura pública na área da cultura, nomeadamente em temas relacionados com a arquitetura Arte Nova e com a obra de Silva Rocha que há cerca de vinte anos vinha divulgando na Imprensa de Aveiro e a nível nacional.


Em consequência dos factos sucintamente hoje relembrados, sem que tenha sido cumprida qualquer das formalidades legais obrigatórias de notificação dos familiares, as cinco urnas que se achavam no piso superior, entre as quais a de Silva Rocha, meu bisavô, a de Olinda sua esposa, a de sua única filha Maria Luísa e a de seu marido, Justino de Oliveira Simões, foram partidas, ignorando ainda hoje os seus descendentes diretos e legítimos proprietários do Jazigo, o que aconteceu aos respetivos invólucros de chumbo e aos restos mortais, agora impossíveis de identificar a não ser por testes de ADN. Todos os inumados (incluindo os restos mortais de João Pedro Soares e os das restantes urnas depositadas no subterrâneo da capela) foram lançados num único talhão com toda a configuração de uma vala comum. Assim se profana uma sepultura que deveria ser monumento classificado e se oblitera a dignidade e a memória de toda uma Família histórica de Aveiro e do ícone da cultura de uma Cidade que lhe deve a configuração que hoje tem e levou à recente candidatura a Capital Europeia da Cultura.

    Em 1903 o Jornal Campeão das Províncias, a quem se deve a história da cidade nesse período, afirmava em artigo publicado por ocasião da morte de João Pedro Soares (1837-1903), um dos maiores beneméritos de Aveiro do seu tempo: “Foi enfim um homem honrado, caritativo e bom, prestadio como os que o são; por isso a sua memória há-de ser por muito tempo lembrada.” Isto depois de louvar a sua ação como grande benemérito e Diretor da Caixa Económica, na origem de empreendimentos como o Teatro Aveirense, o Hospital de Aveiro, a Escola Industrial, um dos fundadores da Praia da Barra onde mandou construir a capela (dedicada a S. João) que ainda aí se encontra e responsável por fazer reviver a pesca do Bacalhau.

    Marcelo Rebelo de Sousa escreveu a 23 de Dezembro de 2015 em vésperas de ser eleito Presidente da República, juntando o seu nome ao abaixo-assinado para apoiar a atribuição do nome de Silva Rocha ao Museu de Arte Nova de Aveiro:

“É com muita honra que junto a minha voz de leigo aos testemunhos ilustres e eloquentes, todos sublinhando o contributo ímpar de Francisco Augusto da Silva Rocha e defendendo a imperiosa justiça de ver devidamente homenageado esse contributo, nomeadamente atribuindo o seu nome ao Museu de Arte Nova e revelando o seu espólio no contexto desse Museu.
Nunca é tarde para homenagens justas e Aveiro é terra de Liberdade, de Democracia e de reconhecimento do Mérito. Tudo razões bastantes para que corresponda ao apelo de tantos, tão notáveis e tão assertivos nos seus depoimentos.”

    Por sua vez, Eduardo Lourenço, a mais eminente figura da cultura portuguesa do nosso tempo escrevera em 2008 (24 de Maio):

“É da mais elementar justiça perpetuar condignamente a memória de uma personalidade artística tão singular como a do arquiteto Silva Rocha não apenas profeta mas autor das belas expressões da Arte Nova de que se honra a sua cidade, Aveiro e para além dela o país inteiro. Que melhor maneira de o homenagear do que dar o seu nome ao novo Museu de Arte Nova? Espanta é que a lembrança venha tão tarde.”

    Não se trata agora de concretizar esta e outras justíssimas homenagens, como a de uma escultura pública de Silva Rocha no centro da cidade, mas a de repor a dignidade da sua memória e a da sua Família, remediando os danos irreparáveis que lhes foram causados, aos seus descendentes e às gerações vindouras impedidas de lhes prestar devidamente culto num dos Cemitérios de referência da Europa, onde Túmulos como este são Monumentos Históricos.

    É inconcebível que na mesma cidade que é hoje candidata a Capital Europeia da Cultura por causa da obra de Silva Rocha, os seus restos mortais permaneçam numa espécie de vala comum onde, por iniciativa da própria Autarquia, em Delegação de Competências na Junta de Freguesia, foram lançados. Que Silva Rocha, um dos expoentes europeus da arquitetura e da cultura portuguesas e europeias do seu tempo tenha sido alvo da violação da sua sepultura, um atentado à sua dignidade e à sua memória e de toda a sua Família.

    Lembramos o Julgamento da História muito mais eficaz e infalível do que o dos homens, totalmente imparcial e que não deixará de envergonhar as gerações vindouras pelo que se perpetrou na figura do expoente cultural de uma cidade e de um País, se os danos causados não forem de imediato remediados.

    Apelamos ao Tribunal da Consciência dos responsáveis por estes atos, para que os assumam como um erro com terríveis consequências, repondo a legalidade e propondo-se reparar por acordo com os familiares os danos causados à dignidade e à memória de toda uma Família, repondo na medida do possível a situação no estado em que se encontrava previamente ao ato de ilegal posse administrativa. Devolvendo a uma cidade e a um País parte essencial da sua memória e do seu património cultural: os restos mortais do autor da Capital da Arte Nova Portuguesa.

     Siza Vieira, um dos principais responsáveis pela salvaguarda da obra de Silva Rocha, escreveu em 1996, quando esta estava a ser destruída em Aveiro:  


“Não é desculpável nem pela ignorância”.

    Afirmo hoje: “Não é desculpável” no Tribunal da Consciência dos Homens, ainda menos no da História e sobretudo naquele onde os nossos destinos se resolvem e onde se cumpre infalivelmente a Justiça divina. É imprescindível que se pronuncie e atue esse tribunal da consciência humana, moral e cívica, de toda uma cidade e de um País, fazendo justiça histórica a Silva Rocha, expoente da cultura portuguesa e europeia do seu tempo.


Maria João Fernandes, Poeta e Crítica de Arte Associação Internacional de Críticos de Arte, bisneta de Silva Rocha.